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'Relação Força-Comprimento' de músculos esqueléticos: você REALMENTE sabe interpretar?

Atualizado: 8 de nov. de 2024


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Prof. Dr. Wellington Lunz - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

Este é um tópico que, de modo geral, graduandos encontram dificuldade para compreender. E mesmo alguns mestres e doutores falham terrivelmente nas inferências e extrapolações baseadas nesse conhecimento.

Normalmente ensinamos as coisas por uma lógica histórica. Mas, hoje, desobedecerei. Vou começar explicando como interpretar essa ‘relação força-comprimento’, a qual também tem vários outros nomes, como: ‘relação tensão-comprimento’, ‘relação comprimento-tensão’, ‘relação força-comprimento’, ‘curva força-comprimento’ e ‘curva força-alongamento’.

Usarei hoje os fundamentos pedagógicos de ensinar do simples para o complexo e, quem sabe, do conhecido para o desconhecido. Confie, que dará certo!

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Talvez você já tenha visto em livros de fisiologia essa ‘relação ou curva força-comprimento’ que a figura 1 (abaixo) ilustra. Ela descreve o comportamento clássico de uma curva força-comprimento em sarcômeros. Perceba que destaquei a palavra ‘sarcômero’, e é por duas razões:

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FIGURA 1

A primeira é que muitos não se esforçam em diferenciar ‘sarcômero’ de ‘músculo’. Mas extrapolar para o ‘músculo’ aquilo que ocorre nos ‘sarcômeros’ é bastante arriscado. Seria um salto indutivo. A mecânica sarcomérica não é sequer igual à da célula muscular.

Lembre-se de que uma célula muscular é formada por muitos sarcômeros. Essa quantidade depende do tamanho da célula. Há células com menos de 1 cm (ex: músculo estapédio) e outras com dezenas de centímetros (ex: músculo sartório). Óbvio que o número de sarcômeros será muito diferente nessas células.

Fiz experimentos com células cardíacas isoladas, as quais são menos heterogêneas. E, salvo engano, uma célula cardíaca tem ≈100 sarcômeros.

A segunda razão, não dissociada da primeira, é que muitos falam em ‘curva força-comprimento muscular’, quando, na verdade, a maioria dessas curvas publicadas por aí tem como base os sarcômeros ou células isoladas. Mas, enfim, vamos à curva força-comprimento agora:

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O Prof Wellington Lunz apoia e recomenda o Instituto Afficere. Agende sua consulta nutricional.

Quando você se deparar com um gráfico desses (figura 1), identifique primeiro as variáveis dos eixos. Veja que no ‘eixo Y’ temos Força e no ‘eixo X’ o Comprimento.

Agora, olhando para as linhas (coloquei a figura abaixo novamente para facilitar), fica fácil perceber que o comportamento da força se modifica à medida que o sarcômero muda de comprimento. Como não é linear, os cientistas classificaram o comportamento em diferentes fases.

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FIGURA 1 - Ilustração da relação força-comprimento sarcomérica (adaptada de Knudson, 2006). Nota: Unidades de medidas foram intencionalmente omitidas porque tendem a variar mais que o comportamento.

É muito importante dizer que a curva pontilhada (linha não contínua) se refere à força ativa. Ou seja, quando há gasto de ATP para produzir força. Numa célula muscular isolada, isso ocorre quando damos um estímulo elétrico nela.

Repare que no início há uma fase denominada alça ascendente. Essa alça permite identificar que a força aumenta à medida que o sarcômero aumenta seu comprimento (fica mais alongado). E, por óbvio, quanto mais encurtado o sarcômero estiver, menos força produzirá.

Isso já é suficiente para interpretarmos que a capacidade de produzir força depende do tamanho do sarcômero. Nesse momento, você já poderia, talvez, estar extrapolando para a seguinte ideia:

Se eu estiver com o músculo muito encurtado, os sarcômeros também estarão muito encurtados, e minha capacidade de produzir força diminuirá”.

E sua lógica estará correta. Mas cuidados são necessários nessa interpretação. Explicarei mais adiante. Vamos continuar com a relação força-comprimento.

Seguindo para a direita da figura 1, você perceberá que, num dado momento, há uma quebra da linearidade da alça ascendente. Calma, que explicarei mais adiante as razões fisiológicas. Depois, chega-se a uma região reta, chamada de platô.

O platô é a fase em que ocorre maior produção de força ativa (pico de força ativa). O platô surge porque, nessa fase, uma certa mudança no comprimento não altera a capacidade de força. Isso tudo, claro, tem explicações fisiológicas, que contarei em breve.

Depois do platô, percebe-se que a força ativa diminui com o aumento do comprimento. Essa fase é chamada de alça descendente.

Por ora, fica evidente que a maior capacidade de produzir força ativa não é nem quando o músculo está muito encurtado, nem quando está muito alongado.

Esse fenômeno, descrito pela curva força-comprimento, ocorre no sarcômero, na célula e no músculo esquelético. Entretanto, a forma e o tamanho dessa curva não são exatamente iguais. No músculo esquelético, por exemplo, é bem mais achatada e larga que em sarcômeros (Herzog e Keurs, 1988a e 1988b).

A figura 1 também ilustra algo que muita gente costuma negligenciar quando se fala dessa curva. Trata-se da linha contínua ascendente que você enxerga no gráfico. Ela retrata a força passiva. Ou seja, trata-se de uma força não explicada pela ação muscular dependente de ATP. É uma força que vem da resistência mecânica dos tecidos.

Por exemplo, se você tentar alongar seu músculo peitoral agora, perceberá que, até certo grau articular, alongará com facilidade. Depois vai ficando difícil. Terá que fazer bastante força para levar o braço mais distante. Isso ocorre porque estruturas teciduais estão gerando resistência. E sem gasto energético.

E, novamente, isso acontece no músculo, na célula e no sarcômero. Na célula e sarcômero o elemento que provavelmente mais explica essa força passiva é a proteína titina (leia depois meu postO que a proteína TITINA tem a ver com hipertrofia e força muscular? vale a pena!). No músculo há mais coisa envolvida, como as fáscias superficiais e profundas, tendões e a matriz extracelular.

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E repare na figura 1 que essa força passiva, que começa ao final da fase do platô, vai aumentando exponencialmente, de modo que a força total (força ativa + passiva) pode até superar a força ativa produzida no platô.

Então, o platô caracteriza a maior capacidade de produção de força ativa, mas não é necessariamente a maior força total. A resistência muscular ao alongamento pode ser tão grande que a força passiva pode até superar a força ativa.

Fica claro pela figura 1 que se fizermos uma contração muscular ou celular, que é quando há encurtamento, de modo a ficar à esquerda do platô, a força passiva desaparece.

Mas se a ação muscular for feita quando o músculo ou célula estiver alongando, a qual é para a direita do platô, então a força passiva aparece, e se soma com a força ativa.

As explicações fisiológicas das alças ascendente e descendente e platô estão relacionadas à sobreposição (overlapping) das proteínas actina e miosina (embora não só). Uma revisão que indico para você entender como isso ocorre foi feita por Rassier et al. (1999). Mas farei um resumo. Siga aí:

Para o sarcômero produzir força, é necessário que actinas e miosinas se conectem. A força ativa aumenta de forma linear com as interações actomiosina ou ‘pontes cruzadas de actina-miosina’ (cross-bridge) (Rassier et al., 1999). Obviamente, quanto menos interação actomiosina, menos força.

Cada sarcômero é delimitado por dois discos Z. A actina, ligada a um disco Z, não atravessa todo o sarcômero. As miosinas, por sua vez, ficam centralizadas no sarcômero. Quando um sarcômero está muito encurtado, as actinas ficam sobrepostas.

Essa figura abaixo (figura 2) é uma montagem de figuras do clássico artigo de Gordon et al. (1966b). Trata-se de um dos artigos que descreveu tal fenômeno. Vai nos ajudar bastante. E se você não se lembra bem o que são as proteínas actina e miosina, desce um pouco mais que ficará mais claro na figura 3.

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FIGURA 2

Repare na figura 2 (acima) as representações indicadas pelo número 6. Veja que quando o sarcômero está muito encurtado, actinas, de lados opostos, passam a se sobrepor. E mais: cada actina pode alcançar o outro lado do sarcômero, e encontrar uma barreira: o disco Z. E aí não dá mais para encurtar.

A miosina, por sua vez, passa a agir sobre apenas uma das actinas. E como as cabeças de miosina, distribuídas nos dois lados, agem em sentidos opostos, as forças vão se anulando, pois estão agindo sobre a mesma actina. No limite, a força resultante será zero. É provável que um sarcômero muito encurtado também desloque a miosina lateralmente, promovendo seu afastamento em relação à actina (Rassier et al., 1999).

Se você olhar agora para as representações apontadas pelo número 1, que mostram o sarcômero muito alongado, verá um afastamento total das moléculas de actina em relação à miosina. Logo, não há como produzir força sem interação actomiosina.

As representações apontadas pelo 2 indicam quando a força ativa é máxima. Neste momento, há contato total da miosina com as actinas ligadas a cada disco Z. E aí vemos a região chamada de platô (entre 2 e 3), onde não há mudança da força apesar de uma certa mudança do comprimento. E qual seria a explicação desse platô?

Repare que a proteína miosina tem uma parte central sem cabeças. Na figura 3 (abaixo), de Rassier et al., 1999, talvez seja mais fácil para você identificar. Quando a actina se desloca nessa região (representada entre 2 e 3, na figura 2), não encontra cabeças de miosina para se ligar; logo, não há como produzir mais força.

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FIGURA 3

Mas a força ativa continua máxima, pois as conexões actomiosina continuam no máximo de interação. Isso, então, explicaria por que há um pequeno deslocamento nessa fase sem gerar alteração da força ativa.

E você poderia questionar sobre aquela quebra da linearidade da alça ascendente, que vemos apontada pela representação número 5 da figura 2.

Ela ocorre quando as actinas estão se sobrepondo exatamente na região central da miosina, que não tem cabeças. A crença é que isso gere alguma dificuldade físico-química, prejudicando o desempenho contrátil.

Mas, depois, quando as cabeças de miosina começam a agir sobre a mesma molécula de actina, é que a mudança da força é mais acentuada. Nesse momento, teríamos a miosina impondo forças em sentido oposto sobre a mesma molécula de actina. E, como sabemos, forças em sentidos opostos tendem a se anular.

Essas são as possíveis explicações dos fenômenos descritos na curva força-comprimento que mostrei lá no início. Mas, agora, faço algumas provocações:

1)      Você acha que sarcômeros humanos são do mesmo tamanho e se comportam como sarcômeros de outras espécies?

2)     O comportamento dessa relação força-comprimento é igual em sarcômeros e músculos?

3)     Quando você está fazendo um exercício muscular (ex: musculação), você acha que essa curva se comporta exatamente como nos sarcômeros?

4)     E quando você está fazendo os seus vários exercícios de musculação, será que os músculos realmente trabalhariam na alça ascendente? E na alça descendente?

5)     Esse conhecimento sobre ‘curva força-comprimento’ tem alguma aplicação prática?

Para acessar respostas a essas provocações, siga depois o post "Relação Força-Comprimento' de sarcômeros, células e músculos NÃO é tudo igual", que fiz para complementar esse aqui. Vale a pena! Aliás, eu o estou publicando ao mesmo tempo para permitir que você conecte tais conhecimentos.

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Para finalizar este post aqui, falarei um pouco sobre a história dessa curva, que está associada à própria ‘teoria dos filamentos deslizantes’. E daqui pra baixo é para os 'brabos' (apaixonados) da fisiologia.

Para você ter uma noção histórica, em um clássico artigo de 1952, Abbot e Aubert já afirmavam na introdução: “A relação tensão-comprimento sob condições isométricas é bem conhecida”. Relatam ainda que essa relação tensão-comprimento muscular começou a ser estudada na segunda metade do século 19. Os estudos iniciais foram em músculos e, posteriormente, células isoladas de rãs e peixes.

Mas os dois estudos (Gordon et al., 1966a,b; aqui e aqui) mais citados sobre a relação força-comprimento são de 1966, ambos liderados pelo cientista Andrew F. Huxley.

Andrew F. Huxley já havia sido laureado com um prêmio Nobel em 1963, pela descoberta que ele e Alan L. Hodgkin publicaram em 1952. Eles desvendaram o mistério de como o cérebro se comunicava com as células musculares. Podemos chamá-los de ‘os pais do (famoso) potencial de ação elétrico. 

Os dois artigos de 1966 são um marco histórico, principalmente por duas razões: 

(1) Os cientistas criaram um aparato que permitiu medir a relação força-comprimento de sarcômeros em condição uniforme (imagine conseguir estudar sarcômeros na década de 1960?).

(2) Os resultados deram muito suporte à teoria dos filamentos deslizantes que havia sido publicada em 1954, em dois artigos, ao mesmo tempo, na mesma revista, por dois autores diferentes, mas com sobrenomes iguais: H.E. Huxley e A.F. Huxley. E não são parentes! (é muito intrigante isso, né!?).  

Aqui abro um parêntese para mais coisas intrigantes: se você pesquisar na internet sobre 'A. F. Huxley', aparecerão basicamente coisas sobre o 'potencial de ação'. E se você pesquisar sobre 'H. E. Huxley' (Hugh E. Huxley) aparecerão coisas associadas aos filamentos deslizantes.

Ambos os Huxley eram britânicos, com história na ‘Cambridge University’. Faleceram com apenas 1 ano de diferença (2012–13). Mas, como eu disse, sequer eram parentes. E mais:

No obituário de H.E. Huxley (feito por Weeds, 2013) está descrito que, num encontro casual dos dois Huxley, eles perceberam que estudavam a mesma coisa, mas com técnicas distintas. E, confrontando os achados, concluíram que os miofilamentos “deslizavam” durante a contração. Então combinaram de publicar a teoria ao mesmo tempo, mas com autoria separada. Essas duas publicações apareceram na revista Nature, em 1954. 

E quando o assunto é a ‘teoria das pontes cruzadas’, os artigos de 1954 são menos citados que um artigo de 1957, de A. F. Huxley, o qual é quase um livro. E, nele, H.E. Huxley é citado por A. F. Huxley.

Curioso é que o obituário de H. E. Huxley diz que as pontes cruzadas foram descobertas em '1958' (e não em 1954 ou 1957) por HUXLEY. Mas não deixa claro qual Huxley...rs!. Diz ainda que foi H. E. Huxley que, em 1969, num artigo publicado na Science, descreveu o movimento das pontes cruzadas, e como o cálcio participava disso.

Ou seja, parece que os Huxley estão envolvidos na descoberta e descrição do movimento das pontes cruzadas e da teoria dos filamentos deslizantes. Eles não são parentes, mas são “filhos gêmeos da Ciência”, tão conectatos quando as actomiosinas.

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Para concluir este post, volto à curva de força-comprimento… Embora o fato de ocorrer perda de força quando músculos ou sarcômeros trabalham encurtados, ou excessivamente alongados, não era novidade na década de 1960, foram as publicações de 1966 que demonstraram a relação entre o comportamento da força e a sobreposição dos miofilamentos de actina e miosina. 

Nesses estudos, feitos com células de rãs, os autores identificaram que o comprimento no qual os sarcômeros geravam mais força (plateau) ocorria entre 2,0 a 2,2 micrômetros. Em humanos, descobriu-se mais tarde, que fica em torno de 2,64 a 2,81, como mostro no post Relação Força-Comprimento' de sarcômeros, células e músculos NÃO é tudo igual, que você poderá ler exatamente agora!

Então é isso, amiga e amigo... Obrigado! E se você gostou, compartilhe com colegas e amigos/as ou em suas redes sociais. E quem quiser receber as novas postagens deste Blog, basta clicar aqui para se inscrever na Newsletter.

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E, como habitual, em tempos de escritas por inteligência artificial (ex: chatGPT e Gemini), vale dizer que não uso isso... Meus posts derivam exclusivamente das minhas leituras e interpretações ao longo da minha trajetória. É fundamentada numa base de conhecimento que as AI ainda não costumam acessar.

Lunz, W. 'Relação Força-Comprimento' de músculos esqueléticos: você REALMENTE sabe interpretar? Ano: 2024. Link: https://www.wellingtonlunz.com.br/post/relacao-forca-comprimento [Acessado em __.__.____].

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professor wellington lunz

Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site www.wellingtonlunz.com.br. Tem se dedicado em transmitir conhecimentos baseados em evidências em diferentes áreas do conhecimento (ex: hipertrofia muscular, treinamento de força, musculação, fisiologia do exercício, flexibilidade). É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Contato pelo site ou e-mail: welunz@gmail.com.br  





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