Prof. Dr. Wellington Lunz
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Quando cheguei no curso de educação física, no ano 2000, estava acalorado o debate sobre a existência ou não das chamadas ‘hipertrofia sarcoplasmática’ e ‘hipertrofia miofibrilar’.
O conhecimento que dominava era que quem treinava com mais repetições e menos carga (ex: fisiculturistas) obtinha mais hipertrofia sarcoplasmática (e maior volume muscular), enquanto aqueles que treinavam com mais carga e menos repetições (ex: powerlifiters) obtinham mais hipertrofia miofibrilar (e maior definição muscular).
Recentemente, quando decidi escrever sobre as classificações de hipertrofia muscular (são estes posts aqui e aqui), fiquei curioso sobre a resposta que o ChatGPT me daria para a seguinte pergunta: quais são os tipos de hipertrofia muscular?
E a resposta do ChatGPT (inteligência artificial; AI) foi basicamente classificar a hipertrofia em sarcoplasmática e miofibrilar. Ainda afirmou que a ‘hipertrofia sarcoplasmática’ era induzida por muitas repetições e pouca carga, e a ‘hipertrofia miofibrilar’ era induzida por muita carga e poucas repetições, como se acreditava há mais de 20 anos.
Se a AI respondeu isso em pleno 2024, é porque tem bastante gente ainda espalhando isso por aí. Discutirei hoje um pouco dessa história, que esfriou durante um certo tempo, mas que recentemente reaqueceu.
Para quem não me acompanha via newsletter, saiba que tenho publicações sobre o nada fácil conceito de hipertrofia, a história da hipertrofia muscular, classificações (aqui e aqui) e mecanismos da hipertrofia, e sobre o acalorado debate relacionado à hiperplasia. E dezenas de outros posts (científicos) que vão muito além do trivial.
A primeira coisa a esclarecer sobre o debate relacionado às hipertrofias sarcoplasmática e miofibrilar é que sempre ocorre aumento do sarcoplasma e de miofibrilas durante um treinamento físico bem-sucedido para hipertrofia muscular. A crença dominante é que os aumentos do sarcoplasma e das miofibrilas ocorram de forma proporcional (alguns chamam isso de hipertrofia convencional; veja depois nesse meu post aqui ou em Roberts et al., 2020).
Então, o que discutirei são as eventuais ‘hipertrofia predominantemente sarcoplasmática’ e ‘hipertrofia predominantemente miofibrilar’.
Vale antes relembrar que uma célula muscular esquelética é preenchida por ~85% de proteínas miofibrilares e ~15% pelo sarcoplasma (meio aquoso onde residem outras proteínas, mitocôndrias, ribossomos, glicogênio, lipídeos, enzimas, etc.) (Roberts et al., 2020).
Apesar desses números darem uma ideia da distribuição espacial, é preciso lembrar que uma célula muscular esquelética tem ~75% de água (Roberts et al., 2020). E, embora haja bastante divergência sobre o quanto de água há no espaço extracelular (já vi de 10 a 45%), é consensual que há bem menos água comparado ao espaço intracelular. E aqui já entra uma primeira discussão:
Considerando que o sarcoplasma ocupa ~15% do espaço celular, muitos denunciam que, mesmo que a tal hipertrofia sarcoplasmática possa existir, isso não poderia ser muito relevante. De fato, é difícil imaginar que esses 15% de espaço conseguiriam aumentar absurdamente. Além disso, dentro desse espaço de 15%, há ainda muitas organelas e moléculas, incluindo proteínas não miofibrilares.
Mas, os que fazem tal apontamento, estão olhando apenas para um dos lados da moeda. Precisamos olhar do outro lado também:
Se uma célula muscular é composta por ~75% de água, então também não há tantas proteínas miofibrilares assim. De fato, as proteínas miofibrilares não devem passar de ~10 a 15% da massa de uma célula. E as proteínas não-miofibrilares devem contar com outros ~5% (Roberts et al., 2020).
Então, quando se fala em hipertrofia verdadeira, que segundo Damas et al. (2018) seria a hipertrofia induzida por acúmulo de proteínas contráteis e estruturais, temos que admitir que há muita água nessa história.
Mas se as miofibrilas ocupam ~85% do espaço intracelular e o sarcoplasma (meio aquoso) apenas 15% do espaço intracelular, onde fica toda essa água que representa 75% da célula? Só há uma resposta possível: dentro das miofibrilas e organelas.
Acho que, agora, vale diferenciar miofibrilas de miofilamentos. As miofibrilas são estruturas maiores, longas e cilíndricas dentro das células musculares. Os miofilamentos são proteínas menores, que compõem as miofibrilas (ex: miosina, actina, titina, tropomiosina, etc.).
Uma analogia: imagine um corpo humano dentro de uma piscina cheia de água. Nesse caso, temos um ‘corpo humano cheio de água’ dentro da piscina cheia de água. A relação entre miofibrilas e células seria mais ou menos assim.
E, sobre isso, sempre fico cismado. Será que a maioria das pessoas que fala das hipertrofias sarcoplasmática e miofibrilar está atenta a essa contabilidade?
Eu sempre acho que as pessoas que falam de ‘hipertrofia sarcoplasmática’ se referem, na verdade, a ‘hipertrofia induzida por água’. Mas não há água só no sarcoplasma. E eu sempre acho que quem fala de ‘hipertrofia miofibrilar’ está desconsiderando os ganhos de água. Mas há também água nas miofibrilas.
Em resumo, não dá para imaginar hipertrofia que não seja majoritariamente explicada por água. A questão, então, parece ser sobre o local predominante dessa água. De qualquer forma, vale dizer que a célula é bem compactada. As miofibrilas ficam densamente alocadas. Esse espaço compactado tem razão fisiológica de ser, em especial para a vital difusão do oxigênio (van Wessel et al., 2010).
Mas, depois dessa introdução toda, de onde nasceu essa história de diferenciação entre hipertrofia sarcoplasmática e miofibrilar?
O estudo de B. Morpurgo, publicado em 1897, em alemão, na Virchows Archiv für Pathologische Anatomie und Physiologie (vol. 150, pp. 522–554), é frequentemente citado (Haun et al., 2019; Roberts et al., 2023) como sendo o primeiro estudo científico a mostrar que o treinamento físico causava hipertrofia de células musculares esqueléticas.
Não consegui acessar o artigo original de Morpurgo, mas os que o citam contam que ele identificou grande hipertrofia em fibras do músculo sartório de cães treinados com corrida. Parece que o aumento das fibras (citam entre 26 e 50% de aumento) foi bem superior ao aumento do músculo (citam entre zero e 13%).
Os que citam Morpurgo não deixam claro como ele chegou à conclusão de que a hipertrofia celular foi explicada pelo aumento do sarcoplasma. Esses resultados acima não permitem tal interpretação. Aliás, resultados muito estranhos: como as células aumentaram tanto sem aumentar o músculo?
Seja como for, parece que foi nesse estudo de B. Morpurgo que começou a crença da hipertrofia sarcoplasmática.
Muito tempo depois (em 1969), quando a medição em microscopia eletrônica de transmissão (TEM) estava começando, Kenneth A. Penman usou a TEM para investigar a ultraestrutura de fibras musculares. Um de seus resultados é descrito assim:
“A concentração de fibras de miosina parece diminuir, o que foi verificado pelo aparente aumento na distância entre as miosinas”.
Esse artigo do Penman (1969) é também citado como um dos trabalhos que evidenciou hipertrofia sarcoplasmática, exatamente porque ele viu aumento da distância entre moléculas de miosina. Mas há duas questões aqui:
1) Penman também viu que as moléculas de actina aumentaram de tamanho, de modo que não se pode descartar a possibilidade da maior distância entre miosinas ter sido forçada pelo aumento do diâmetro das 7 a 11 moléculas de actina que orbitavam cada miosina.
2) Se o que está entre os miofilamentos (ex: miosinas e actinas) não entra no cômputo do sarcoplasma, esse resultado não poderia ser usado para defender a hipertrofia sarcoplasmática. De acordo com Roberts et al., (2023), o sarcoplasma é o meio aquoso no qual residem as miofibrilas e os componentes não miofibrilares.
Há também o problema de a amostra ter sido muito pequena (entre 2 e 3 pessoas), embora é algo que eu implique menos que a maioria dos meus colegas. Mas há outra coisa curiosa, talvez explicada pelo viés de confirmação:
Há quem cite esse artigo de 1969 para defender a ‘hipertrofia sarcoplasmática’, mas sem citar o artigo que o mesmo Kenneth A. Penman publicou no ano seguinte (1970; esse artigo aqui) que mostra o contrário. Explico:
No estudo de 1970, três estudantes foram submetidos a 10 semanas de treinamento que envolvia força dinâmica e isométrica, e corrida em escada. Penman usou a mesma técnica (TEM). Dessa vez, ele mediu o diâmetro de células (ele não fez isso em 1969) e, curiosamente, não encontrou diferença. Mas o resultado que mais chamou atenção foi outro:
Ele encontrou aumento na concentração de miosina e diminuição da distância entre os filamentos de miosina, sugerindo maior densidade miofibrilar ou, como preferem alguns, maior empacotamento de miofibrilas (myofilament packing).
Ou seja, esse resultado de 1970 é o oposto do encontrado em 1969. Eu até reproduzi a figura do artigo de 1970 noutro post (veja depois aqui) que ilustra esse “empacotamento”.
Recentemente, Maeo et al. (2024), também usaram microscopia eletrônica de transmissão (TEM) para identificar que pessoas bastante experientes (média de 6 anos) em treinamento típico de hipertrofia muscular apresentavam miosinas com menor inter-espaço entre elas. Ou seja, as miosinas estavam mais próximas umas das outras, sugerindo maior empacotamento miofibrilar.
Houve até correlação (coef. de determinação = 0,15 ou 15%) entre essa maior densidade miofibrilar e a área muscular. Ou seja, quanto maior o músculo, maior a densidade miofibrilar (e vice-versa).
Considerando que o treino era típico de hipertrofia, e que essas pessoas eram muito musculosas (área muscular 70% maior que o controle destreinado), esse resultado não bate com a suposição de que fisiculturistas teriam maior hipertrofia sarcoplasmática.
Mas voltando às antigas, percebo que o trabalho que mais deu força à ideia de hipertrofia sarcoplasmática foi o clássico artigo de MacDougal et al (1982). Já o detalhei noutra postagem (aqui). Resumidamente, usando a TEM, eles avaliaram células musculares de ‘fisiculturistas (n = 5) + powerlifters (n = 2)’, e compararam com um grupo controle antes e após treinarem por 6 meses.
O resultado mais citado para justificar a hipertrofia sarcoplasmática foi a menor densidade miofibrilar e a maior densidade do sarcoplasma nos atletas em comparação ao controle.
Eles dizem na discussão do artigo que a média da densidade do volume sarcoplasmático das fibras dos atletas foi de 24,1%, enquanto do controle foi de 14,8%. A média da densidade miofibrilar foi 73,2% para os atletas e 82,5% para o controle.
É de fato uma diferença bastante expressiva. Mas há quem critique (Roberts et al., 2020) o excesso de manipulações teciduais que a TEM exige. Mas, em tese, espera-se erro sistemático constante, não de viés.
Outra crítica ao estudo é que a amostra era usuária de fármacos anabólicos. Os autores notaram percentual elevado de fibras atrofiadas e cicatriz tecidual. A dúvida é se esse aumento do sarcoplasma seria derivado de uma má adaptação induzida pelos anabólicos, em vez de uma adaptação fisiológica desejável.
Mas é uma crítica questionável, pois o grupo de pessoas que treinou por 6 meses, sem anabólicos, também teve aumento do sarcoplasma e redução de miofibrilas, embora numa magnitude menor. Sei que Maeo et al. (2024) usaram a TEM para estudar células musculares de pessoas hipertrofiadas que relataram não usar anabólicos e encontraram resultado oposto ao de MacDougal et al (1982). Enfim, difícil saber as razões dessas diferenças.
Uma coisa que me chamou atenção nesse artigo é que MacDougal et al (1982) não relatam diferenças entre os fisiculturistas e powerlifters. Muitos dizem que fisiculturistas teriam hipertrofia predominantemente sarcoplasmática e powerlifters hipertrofia predominantemente miofibrilar. Mas, se essa diferença fosse clara, esses autores, extremamente inteligentes, teriam percebido.
Outro estudo que costumam citar em favor da hipertrofia sarcoplasmática é o de Toth et al. (2012). Idosos (média 71 anos) treinaram por 18 semanas (1-3 séries; 50-80% de 1 RM; 2 x/sem). Os autores não identificaram hipertrofia das fibras musculares do músculo vasto lateral. Mas, usando a TEM, viram redução de ~15% (estimei pela figura 1) do espaço ocupado pelas miofibrilas. Como a amostra é de pessoas mais velhas, fica a dúvida se é uma adaptação específica associada à idade.
Eles relatam que a biópsia foi feita pelo menos 5 dias após a última sessão de treino. Essa é uma informação muito relevante, a qual nem todos os trabalhos deixam claro. Ou, quando informam, dizem que a biópsia foi feita num prazo menor.
Por exemplo, Haun et al (2019) viram que um treinamento de força de 6 semanas reduziu em ~30% a concentração de miosina e actina em células do músculo vasto lateral de pessoas experientes em treinamento. Isso seria sugestivo de hipertrofia sarcoplasmática.
Mas, para além da altíssima variação entre pessoas (aprox. metade da amostra hipertrofiou, a outra metade teve atrofia), eles reconhecem a limitação de terem feito biópsia apenas 24h depois da última sessão de treino.
Detalhe: O treinamento era muito volumoso, com 32 séries por exercício na última semana, e as pessoas que tiveram atrofia também tiveram redução na concentração de miosina e actina. É bem provável que essa alteração que viram esteja associada à retenção hídrica (mas eles não mediram inflamação e água intracelular).
Sabe-se que, após uma sessão de treino muito desafiadora, a retenção hídrica celular vai aumentando ao longo dos dias (com pico de inchaço entre 4 a 8 dias). Depois, leia meu post O que é o pump muscular? Aliás, será que fazer biópsia 5 após a última sessão seria suficiente para evitar efeitos agudos?
Yu et al. (2013) viram aumento de ~24% do tamanho das fibras musculares depois de 7 a 8 dias de uma sessão desafiadora de treino excêntrico (esse rápido e grande aumento não pode ser explicado por acúmulo de proteínas).
Com certeza, existe uma hipertrofia induzida por água que, por um dado tempo, faz com que a proporção de líquido fora e, muito provavelmente, dentro das células musculares seja maior comparativamente a uma situação de não treinamento.
Damas et al. (2018) mostraram que a hipertrofia induzida por treinamento de força que ocorre nas primeiras 2 semanas é quase exclusivamente explicada por edema muscular. Mesmo depois de um mês de treinamento, em torno de 50% da hipertrofia ainda é explicada por retenção hídrica.
Embora os autores acreditem que a maioria dessa água seja extracelular (sem medida direta, pois usaram ultrassom), é improvável que esse aumento hídrico extracelular não repercuta em aumento intracelular de água.
Isso porque alterações metabólicas intracelulares induzidas pelo exercício devem gerar um meio interno hipertônico capaz de atrair água para dentro da célula (Sjøgaard e Saltin, 1985), ou lesões das membranas celulares podem facilitar a entrada de água, ou até mesmo o maior volume extracelular de água poderia aumentar a pressão hidrostática, forçando a entrada de água na célula.
O que não dá para afirmar é se essa água se distribuiria uniformemente (ou não) em relação ao sarcoplasma e miofibrilas.
Em resumo, não dá para afirmar que exista realmente uma hipertrofia predominantemente sarcoplasmática ou predominantemente miofibrilar. Por extensão lógica, não dá para afirmar que fisiculturistas teriam mais hipertrofia sarcoplasmática, e que powerlifters teriam mais hipertrofia miofibrilar.
E considerando a proporção espacial do sarcoplasma e a massa de proteínas miofibrilares, nenhuma dessas eventuais hipertrofias seria muito significativa sem a participação da nobre e boa amiga ‘água’.
É bem provável que existam fases do treinamento em que a célula tenha mais ou menos água. É preciso, inclusive, considerar o uso de drogas ou suplementos (ex: creatina aumenta a concentração de água intracelular; ver Deminice et al., 2016). Isso, entretanto, tem sido pouco explorado na célula muscular esquelética de pessoas que fazem treinamento de hipertrofia muscular.
Então é isso, amiga e amigo... Obrigado por acompanhar até aqui. E se você gostou, compartilhe com colegas e amigos/as ou em suas redes sociais. Quem quiser receber as novas postagens deste Blog, basta clicar aqui para se inscrever na Newsletter.
E, como habitual, em tempos de escritas por inteligência artificial (ex: chatGPT e Gemini), vale dizer que essa postagem é feita exclusivamente das minhas leituras e interpretações ao longo da minha trajetória. E se quiser citar este post, pode ser mais ou menos assim:
Lunz, W. Quais os tipos de hipertrofia? Ano: 2024. Link: https://www.wellingtonlunz.com.br/post/quais-os-tipos-de-hipertrofia [Acessado em __.__.____].
Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site wellingtonlunz.com.br. Tem se dedicado em transmitir conhecimentos baseados em evidências em diferentes áreas do conhecimento (ex: hipertrofia muscular, treinamento de força, musculação, fisiologia do exercício, flexibilidade). É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Contato pelo site ou e-mail: welunz@gmail.com.br
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