Prof. Dr. Wellington Lunz - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Num post anterior eu expliquei (e compliquei) o conceito de hipertrofia (tá aqui). Lá eu também falei da origem da palavra hipertrofia. Hoje eu quero falar sobre a história científica da hipertrofia muscular esquelética.
Era para ser um texto curtinho, mas foram surgindo coisas legais demais para ficarem de fora. Então, aperte seu botão 'coragem' e vamos desbravar essa história.
Antes, devo alertar que ‘hipertrofia muscular esquelética’ não é a mesma coisa que ‘hipertrofia’ ou ‘hipertrofia muscular’... ‘Hipertrofia’ pode ocorrer em qualquer tecido; e ‘hipertrofia muscular’ pode ocorrer em qualquer músculo (ex: liso e cardíaco).
Vou enfatizar a história científica, mas não significa que antes não se tinha conhecimento do fenômeno. A diferença é que a ciência busca compreender os mecanismos, e uma consequência disso é a produção de conhecimentos refinados, o que permite ações muito mais eficientes.
Por exemplo, sabe-se há milênios que a chuva e o sol são importantes para a agricultura. Mas esse saber não responde perguntas como: Quanto de chuva? É o fenômeno 'chuva' ou é a água? (se for a água, pode vir de qualquer fonte, não precisa cair do céu). E quanto de sol? O que vem exatamente do sol? A "dose" é igual para todas as formas de agricultura? Foi ciência que respondeu tais questões e tornou a agricultura mais eficiente. E vale para qualquer área de conhecimento.
Eu apostaria tudo que tenho de que o ser humano reconhece a hipertrofia e atrofia muscular há muiiiitos milênios. Acredito firmemente que nossos antepassados milenares eram capazes de perceber, por exemplo, que pessoas imobilizadas por ferimentos atrofiavam velozmente. E, o oposto, aqueles envolvidos em atividades de carregar ou puxar peso eram mais musculosos. E por que eu apostaria tudo?
Vocês já ouviram falar das cavernas de Lascaux, de Chauvet e de Cosquer? Todas na França. Somadas, elas tem centenas de artes rupestres refinadas. E essas artes foram feitas há ~18 mil e 33 mil anos. Isso mesmo! Muitos milhares de anos antes de Cristo.
A maioria das artes (desenhos) é de animais. Vários desenhos com técnica sofisticada, envolvendo delicados gradientes de cores. Me lembro de um desenho de um homem sendo retratado com a cabeça de pássaro (um homem pássaro). Ou seja, já havia representações simbólicas, subjetivas. Enfim, coisas incríveis. Depois dê uma caçada na internet. E o que isso tem a ver com hipertrofia?
Reconheço que diretamente não há qualquer relação. Mas tem a ver com inteligência. Com capacidade de percepção sensível. Por isso eu duvido que o ser humano não tinha inteligência para perceber os fenômenos que hoje chamamos de hipertrofia e atrofia.
Bem mais adiante temos a famosa e anedótica história de Milo de Crotona (~ 500 anos a.C.). Milo foi um atleta grego. Muitos o consideram como o primeiro praticante documentado de treinamento PROGRESSIVO de força.
De acordo com a anedota, Milo carregava um bezerro recém-nascido sobre os ombros diariamente. Teria feito isso por 4 anos seguidos, até este se tornar um touro adulto. Como resultado teria aumentado muito sua força e massa muscular.
Depois, nas culturas greco-romana, considerando as representações artísticas que hoje temos acesso, fica claro que essa galera do passado compreendia bem a hipertrofia muscular; e, dependendo da época, a hipertrofia muscular era mais ou menos valorizada.
Mas, como eu disse, ciência é outra história. Para a ciência não é suficiente a percepção de que um fenômeno existe. E como a ciência moderna é bem recente (coisa do século 16), a compreensão da hipertrofia pelos olhos da ciência é relativamente recente.
Parece que o primeiro pesquisador que usou o conceito de hipertrofia no âmbito biológico foi o patologista alemão Rudolf Virchow (ver Roberts et al., 2023). Isso foi no ano de 1858.
Virchow, que já usava microscópio na época, publicou um estudo apontando que alguns tecidos cresciam sem aumentar o número de células (ele chamou de hipertrofia), enquanto linfonodos cresciam pelo aumento do número de células (ele chamou de hiperplasia). E essa diferenciação e nomenclatura continuam até hoje.
E parece que foi só em 1897 que surgiu o primeiro estudo científico mostrando clara relação entre exercício físico e hipertrofia muscular esquelética. Já voltarei a falar desse estudo, mas me permitam antes esclarecer algo.
Antes desse primeiro estudo, Eugen Sandow (1867-1925, foto abaixo; fonte: McArdle et al., 8ª edição), que hoje é conhecido como pai do ‘fisiculturismo’ já exibia sua vasta e bem definida musculatura no chamado teatro de variedades (gênero Vaudeville).
Eugen Sandow aproveitou a fama para escrever sobre treinamento de força e alimentação, e chegou a propor máquinas de força.
Em 1889, Daniel L. Dowd (1854-1897) já anunciava e comercializava máquina de força para uso doméstico (veja a foto abaixo; fonte: McArdle et al.; 8ª edição). E é interessante ver escrito na propaganda a palavra 'health' (saúde) associada a máquina.
O que eu quero destacar com isso é que muito antes da ciência o ser humano já sabia bem o que aumentava os músculos. Mas, para a ciência são necessárias evidências diretas. Não basta alguém bater no peito dizendo que é assim ou assado. Pois além do risco de mentiras, charlatanismo ou mesmo erros honestos, há outras questões, como: Seria hipertrofia ou hiperplasia? Seria pelo treinamento ou algum efeito indireto (ex: aumento da ingestão alimentar)?
Então, volto agora à história do primeiro estudo científico. Segundo Roberts et al. (2023), foi um pesquisador chamado B. Morpurgo (em 1897) que publicou o primeiro estudo mostrando evidência direta entre exercício físico e hipertrofia do músculo sartório. E ele confirmou que era hipertrofia, e não hiperplasia.
E parece que Morpurgo NÃO usou o clássico treinamento de força, mas sim o treino de corrida (amostra de cachorros). Morpurgo chamou de ‘work-induced hypertrophy’ (hipertrofia induzida pelo trabalho).
Como o estudo de Morpurgo foi com corrida e cachorro, ainda deixava uma brecha para os céticos questionarem se o treinamento de força poderia causar a mesma coisa, e se seria extensível aos humanos. Ciência é assim mesmo. Não tem vergonha de questionar o que é aparentemente óbvio. E isso é uma importante qualidade.
Depois de Morpurgo teve muita gente associando indiretamente o treinamento de peso com hipertrofia, mas sem provas diretas. Veja um resumo:
>> Teve o crescimento da modalidade conhecida como fisiculturismo;
>> Teve estudo mostrando hipertrofia do músculo masseter induzida por mastigação excessiva;
>> Teve a famosa teoria da resposta trifásica ao estresse, de Hans Selye, também conhecida como “Síndrome da Adaptação Geral” (SAG), proposta na década de 1940. A propósito, eu dei uma boa explicação sobre a SAG e sua importância para explicar a hipertrofia muscular, num post chamado 'Por que a hipertrofia acontece?' (é só clicar).
>> Na década de 1940 ainda tiveram os trabalhos de Thomas Delorme, que relatavam que o treinamento progressivo com peso promovia aumento do volume muscular. Mas esse volume seria hipertrofia? Ou hiperplasia? Ou retenção hídrica? Eram questões científicas ainda sem respostas inscontestáveis.
Eu fiz um vídeo bem legal (clique no tempo 0:19:48) onde, entre outras coisas, eu falo da importância de T. Delorme, também conhecido como o ‘pai da técnica pirâmide’. Mas suas contribuições vão muito além (assista lá).
>> Na década de 1960 as coisas ficaram sofisticadas. Começaram a surgir estudos com biologia molecular (RNA e DNA), com uso de radioisótopos, com microscopia eletrônica e, mais no final, com imuno-histoquímica. Teve estudo indicando que os diâmetros de miofibras e miofibrilas eram geralmente maiores em ratos treinados comparado a ratos não treinados.
Mas apesar de toda essa sofisticação, nada foi feito relacionando ‘treinamento de força e hipertrofia muscular esquelética em humanos’.
>> Teve ainda em 1967 o clássico estudo de Alfred L. Goldberg, que introduziu o modelo de remoção cirúrgica de músculo sinergista. Costumamos chamar de ‘ablação sinergista’.
Neste modelo corta-se o tendão (tenotomia) de um músculo da pata de roedores, o que obriga os músculos restantes a fazerem mais esforço para suportar o peso do animal. E isso gera muita hipertrofia, e muito rapidamente (em poucos dias).
Esse modelo foi uma revolução. Apesar de críticas de que não representaria bem a hipertrofia induzida por carga externa, ainda é uma técnica muito usada (com adaptações).
É sempre bom lembrar que hipertrofia também ocorre como um processo natural. Um bebê não tem células do tamanho de um adulto. Essas células aumentam. Isso sempre fez alguns hipotetizarem que a ‘hipertrofia induzida por carga’ poderia ter mecanismos diferentes dessa hipertrofia natural.
E veja como a história é curiosa. Outro dia vi um guru desse de 7 a 8 milhões de seguidores dizendo que a hipertrofia induzida pelo treinamento de força ocorre por causa do aumento de hormônios anabólicos induzidos pelo próprio treinamento. Hoje temos absoluta convicção de que isso é uma bobagem sem tamanho. Em 1975 (há quase 50 anos) Goldberg e Cols já haviam publicado uma bela revisão (um compilado de resultados do seu modelo de ablação), cujo os resultados deixavam claro que a hipertrofia induzida por carga não era dependente de fatores endócrinos (ex: testosterona, GH, insulina, e hormônios da tireoide).
Claro que hormônios anabólicos exógenos em grande quantidade maximizam os ganhos de massa muscular, mas a hipertrofia induzida por treinamento de força pode ocorrer sem mudança hormonal, mostrando que o mecanismo é outro. Tudo indica que o mecanismo é a sobrecarga enfrentada pelas miofibras. Mas, voltando a história:
>> Teve ainda em 1969 um estudo super sofisticado com humanos, feito por Kenneth A. Penman. Ele usou microscopia eletrônica, o que lhe permitiu investigar tamanhos de sarcômeros, de miosinas, de actinas, e a distância entre essas estruturas. Entretanto, estranhamente, ele não mediu o tamanho do músculo e das células, e com isso ficamos sem saber se houve hipertrofia. E a amostra dele era bem pequenininha. Eram 2 pessoas por grupo (3 grupos) fazendo treinos diferentes.
No ano seguinte (1970) Kenneth A. Penman publicou outro artigo para se redimir... O estudo envolveu novamente microscopia eletrônica em humanos. Nesse trabalho ele incluiu 3 estudantes, os quais foram submetidos a 10 semanas de um treinamento que envolvia força dinâmica e isométrica, e corrida em escada. Dessa vez ele mediu a circunferência da coxa e diâmetro de células.
E, curiosamente, ele não encontrou diferença nessas medidas. O que ele encontrou foi aumento no número de filamentos de actina ao redor de cada miosina, aumento na concentração de miosina e diminuição da distância entre os filamentos de miosina. Esse último resultado fez ele sugerir que os filamentos de miosina ficaram mais empacotados (aumentou a densidade), conforme ilustra essa figura abaixo, que está no artigo original dele. Veja como a figura da direita mostra as miosinas (círculos maiores) mais próximas uma das outras.
E isso bate bem com a discussão que eu fiz no post sobre ‘o que é hipertrofia’. Lá eu disse que é fisicamente possível aumentar a densidade e massa sem aumentar o volume muscular.
>> Parece que antes, em 1962, Jonas Bergstrom fez um estudo com humanos onde examinou adaptações do tecido muscular esquelético ao treinamento de peso. Mas infelizmente eu não consegui acesso ao artigo. Nem mesmo ao resumo. E o que Roberts et al. (2023) falaram sobre o estudo dele não permite ter clareza como o estudo foi feito.
>> Em 1972, aproveitando-se a técnica de coloração da atividade da ATPase miosínica que havia sido proposta recentemente, Gollnick et al. compararam as características de fibras musculares de levantadores de peso, atletas de corrida e não treinados. E, como esperado, viram que os levantadores de peso possuíam miofibras maiores. Entretanto, era um estudo transversal, o que sempre gera margem para dúvida, inclusive porque nessa época os anabolizantes já faziam sucesso.
>> Depois veio um estudo bem conduzido, feito por Thorstensson e Cols, em 1976. Tudo indicava que o gol sairia do 'paper' deles. Esse estudo envolveu treinamento de força progressivo em humanos com reps até ou perto da falha (3 séries de 6 reps), 3 vezes por semana, por 8 semanas (n = 14; jovens de 19 a 31 anos). E olha o que aconteceu:
O treinamento chegou a aumentar a força em 67%, mas, estranhamente, a circunferência da coxa e principalmente a ‘área de secção transversa’ de fibras musculares NÃO foram modificadas pelo treinamento. Como é possível?
Uma possibilidade que vejo é que os miofilamentos podem ter ficado mais empacotados. Como eu disse no post sobre ‘o que é hipertrofia’, é fisicamente possível aumentar a massa sem aumentar o volume. Mas é uma especulação minha, pois os autores não mediram isso. O que os autores efetivamente mediram, e que fortalece minha tese, foi o seguinte:
'Usando uma estimativa a partir de medidas de um isótopo específico do potássio, eles concluíram que a massa magra e a massa muscular total aumentaram.'
Ou seja, aumentou a massa, mas não o volume. Isso estaria alinhado com a minha tese e com os resultados de Penman (1970) que contei acima.
Caso o estudo do Jonas Bergstrom, que eu não tive acesso, não tenha sido o primeiro a mostrar relação direta entre treinamento com peso e hipertrofia muscular humana, então o estudo de Thorstensson e Cols (1976) pode ter sido o primeiro a mostrar que o treinamento de força aumentava massa muscular. Mas...
Perceba que aumentou a massa muscular, mas não o volume...rs! E hipertrofia se mede pelo volume. Pelo menos essa é minha defesa (leia depois o outro post).
Se a gente considerar volume como medida correta da hipertrofia, então teríamos chegado a 1976 ainda sem evidência direta e incontestável de que o 'treinamento com peso causa hipertrofia muscular esquelética humana'.
Penman, primeiro, e depois Thorstensson e Cols, poderiam ter feito o gol, mas a bola bateu na trave. Parece mentira que demoramos tanto para cientificamente provar a relação causal entre 'treino com peso > hipertrofia muscular esquelética humana'. Algo aparentemente óbvio há milênios.
Segundo Roberts et al. (2023), ainda no finalzinho da década de 1970 surgiram alguns estudos confirmando essa relação tão procurada. Mas eu não vou dar o troféu para ninguém, pois há sempre o risco da gente errar. Inclusive Roberts et al. (2023) citam um estudo que teria mostrado tal relação, mas eu lí o artigo citado e não vi o que eles viram.
Mas, para finalizar a história, sei que do final da década de 1970 até hoje tivemos um acúmulo enorme de estudos mostrando relação incontestável entre treinamento com peso e hipertrofia muscular.
E como o papel da ciência é refinar o conhecimento, somos testemunhas que isso verdadeiramente ocorreu. Hoje sabemos bem as melhores estratégias para aumentar massa muscular. Aliás, aproveito para fazer propaganda desse meu e-book (que está abaixo). Eu o fiz há um tempinho atrás e doei ao Instituto Afficere de Nutrição, que é da minha esposa e sócia. É um e-book com preço simbólico. Super baratinho! Se você não tem ainda, clica aí e adquira o seu. Ficou bem legal.
Há também o curso de hipertrofia que eu fiz propaganda lá no ínicio do texto (banner; dei minha contribuição como convidado). É um investimento maior, mas ficou de altíssimo nível. Afinal, não somos 'gurus caçadores de seguidores'. Não tiramos conclusões de 'vozes da cabeça' e não vendemos ilusões.
Então é isso amigos e amigas... Obrigado pela coragem de ler até aqui. Descupe-me pelo texto longo, mas há coisas que não podem ficar de fora.
E se você gostou, que tal compartilhar esse post com colegas e amigos/as. E se você curtir esse post me motivará a continuar escrevendo. E quem quiser receber as novas postagens deste Blog, basta clicar aqui para se inscrever na Newsletter.
E em tempos de escritas por inteligência artificial (ex: chatGPT e Gemini), vale dizer que essa postagem NÃO usa isso. É feita exclusivamente das minhas leituras e interpretações ao longo da minha trajetória. E quem quiser citar essa postagem, pode ser mais ou menos assim:
Lunz, W. Hipertrofia muscular: Quanto você sabe? Ano: 2024. Link: https://www.wellingtonlunz.com.br/post/historia-da-hipertrofia [Acessado em __.__.____].
Clique aqui e acesse videoaulas no 'Canal Prof. Wellington Lunz'.
Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site www.wellingtonlunz.com.br. Tem se dedicado em transmitir conhecimentos baseados em evidências em diferentes áreas do conhecimento (ex: hipertrofia muscular, treinamento de força, musculação, fisiologia do exercício, flexibilidade). É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Contato pelo site ou e-mail: welunz@gmail.com.br
Comments