Prof. Dr. Wellington Lunz - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Chris Beardsley se autorreferencia (no Linkedin) como ‘educador baseado em ciência’ para treinadores de força e personal trainers. Ele tem mais de 120 mil seguidores no IG. Não sei quantos seguidores em outras redes sociais, pois ele me bloqueou no twitter e facebook. Ele é muito sensível ao contraditório.
Parece ter o hábito de bloquear os divergentes para preservar a ‘integridade da bolha’. Eu o seguia em algumas redes porque ele postava alguns artigos que eventualmente me interessavam. Mas exatamente porque eu leio os artigos que me interessam, eu percebi que ele ‘inviesa’ (bias) os resultados em favor da própria narrativa.
Inicialmente me chamou atenção o fato de que ele NUNCA apresenta medidas de variação dos resultados. E, em ciência, a não apresentação dos desvios é uma ofensa, uma vez que a média é afetada por valores extremos. Apresentar média sem desvios vale NADA para um leitor crítico (ex: cientista).
Continuo seguindo-o clandestinamente no IG, porque a ciência é um sistema de ‘autorregulação’. Ou seja, cientistas precisam “fiscalizar” cientistas para que a ciência não perca a linha (embora ele não seja cientista, apenas divulgador “científico”... mas a divulgação de bobagem também afeta a ciência, principalmente por aqueles com grande alcance social).
Mas minha intenção aqui é entender melhor um tópico em que o Chris insiste, e que, até o momento, NÃO vejo fundamento. A cada ~ 3 posts, em 1 o Chris afirma que o CÁLCIO causa fadiga muscular. Hoje, aliás, 24.10.2023, ele postou algo sobre isso. Procurando muito na internet, vi que ele cita uns artigos de 2006 para trás. Nada depois disso.
Mas chama muito atenção o que ele NÃO cita! Por exemplo, ele não cita artigos de, creio, a maior referência em estudos sobre fadiga muscular esquelética, que é o cientista australiano David G. Allen, Professor de Fisiologia da University of Sydney.
D.G Allen tem mais de 400 artigos publicados, iniciados lá na década de 1970, e muiiiitos sobre ‘cálcio e fadiga’. Há mais de 50 artigos com a palavra fadiga no título, e vários destes envolvendo o cálcio (veja um pouco do D. G. Allen aqui).
Mas o que D. G. Allen tem mostrado reiteradamente é que a fadiga celular é causada por redução da sensibilidade miofibrilar ao cálcio e redução da liberação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático. E ele tem publicação até pelo menos 2019. Não conheço um artigo do D. G. Allen que fala que o cálcio causa fadiga. E, como já disse, o Chris não cita artigos do D. G. Allen.
Recentemente o Chris citou um artigo de Tabuchi et al (2022) para sugerir a relação de ‘cálcio, lesão miofibrilar e FADIGA’. Mas o estudo é SÓ sobre lesão miofibrilar, e não fadiga.
O cálcio, de fato, pode gerar microlesões miofibrilares, mas isso ocorre geralmente após sessões envolvendo ações excêntricas muito volumosas e intensas. E isso nem é agudo e nem tem a ver com fadiga que ocorre durante o exercício. É algo que ocorre várias horas depois.
A propósito, na postagem sobre o artigo de Tabuchi et al (2022), o Chris fala da associação do cálcio com microlesões em 24h após a sessão, mas não cita o fato de que até 5h não houve associação entre cálcio e microlesões. E devemos lembrar que 24h para o metabolismo de ratos não é igual 24h do metabolismo humano. Ou seja, ele apresenta o resultado de forma enviesada (biased).
Detalhe: Essa relação entre cálcio e microlesões também já foi estudada e documentada pelo D. G. Allen. Aparentemente, depois de sessões excêntricas volumosas e intensas, ocorre abertura de canais de cálcio sensíveis ao estiramento, permitindo a entrada de íons. E há décadas que se sabe que se o cálcio ficar solto dentro da célula, ele sinaliza para vias proteolíticas. Não é à toa que células têm retículo sarcoplasmático para manter o cálcio armazenado. Mas não é só por isso, pois cálcio solto dentro da célula causaria contração mantida.
E foi publicado agora (Eisner et al., 2023) uma mega revisão sobre tamponamento do ‘cálcio intracelular’ (Ca2+i) numa excepcional revista (Physiological Reviews). Eu estava na expectativa de ver algo novo sobre ‘cálcio como causador de fadiga’. Mas, adivinha! Encontrei o oposto no artigo.
Devo lembrá-los que FADIGA é basicamente ‘perda de desempenho’. Numa célula podemos interpretar como ‘perda de desempenho contrátil’. Nessa revisão em nenhum momento o Ca2+i aparece como CAUSADOR da fadiga, mas o OPOSTO. Daqui a pouco eu mostro.
Antes, para os amantes da fisiologia, como eu, deixe-me falar um pouco da dinâmica do Ca2+i, inclusive para vocês verem como essa associação que o Chris faz é pouco razoável.
Em condições de repouso a maior parte do Ca2+i está ligada a tampões, com apenas ~ 1% livre (ionizado). Uma sequência de potenciais de ação em uma célula muscular esquelética gera pulso de liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático (RS) que dura ~1 ms, com taxa de 200 micromolar/ms.
O cálcio se liga rapidamente (em até ~3 ms) às troponinas C, enquanto a proteína SERCA retorna o Ca2+i para o RS em até ~100 ms. Após esse pulso de liberação de cálcio, em que até 350 micromolar podem ser liberados do RS, APENAS ~5,7% ficam IMEDIATAMENTE livres. E em fibras tipo II de ratos submetidas a estimulações tetânicas (ou seja, muitos estímulos elétricos seguidos), essa quantidade de cálcio livre NÃO aumentou (obs: não confundir com estímulos excêntricos excessivos, que danificam a célula).
Agora algo mais AFIRMATIVO: Num dado momento dessa revisão de Eisner et al., eles citam um artigo do D.G. Allen, de 1993, para afirmarem o seguinte:
“...a acidose diminui a força enquanto aumenta a concentração de Ca2+i, e AMBOS os efeitos podem ser ATRIBUÍDOS, ao menos em parte, à diminuição da ligação do cálcio à troponina".
Deixe-me “traduzir” o que os autores estão dizendo:
‘A ACIDOSE diminui a afinidade do cálcio à troponina C, o que obviamente diminui a FORÇA contrátil (ou seja, causa fadiga). E essa diminuição da ligação ‘cálcio-troponina C’ faz o cálcio livre aumentar dentro célula, uma vez que a troponina C é um dos principais tamponantes de cálcio. Portanto, o eventual aumento do cálcio livre parece CONSEQUÊNCIA do processo de fadiga induzido por acidose, e não induzido por cálcio’.
Assemelha-se um pouco com a equivocada associação causa-efeito entre lactato e fadiga (tese que sobreviveu por algumas décadas). O fato do lactato aumentar durante a fadiga não quer dizer que seja o causador da fadiga.
Eisner et al. dizem também que outro mecanismo que poderia CAUSAR FADIGA seria o aumento da concentração de fosfato citoplasmático, como resultado da quebra da fosfocreatina. Esse fosfato se precipita com o cálcio no RS, formando ‘fosfato de cálcio’, e com isso contribui para a FADIGA ao diminuir a liberação de cálcio do RS.
Ou seja, NÃO parece ser o cálcio que causa fadiga, mas sim a ‘incapacidade’ do cálcio se ligar a troponina C e/ou a diminuição da sua liberação pelo RS.
E, como já antecipei, claro que Ca2+i livre em excesso gera problemas. Além de ser proteolítico, a saturação dos tampões de cálcio levariam à facilitação sináptica e à contração TETÂNICA (podendo causar câimbras no músculo esquelético, arritmias no coração e doenças). Mas NÃO é isso que faz a gente FADIGAR durante um exercício.
Aliás, uma coisa habitualmente relatada nos protocolos com excesso de ações excêntricas é a HIPERCONTRAÇÃO (espasmos) das células, e não a hipocontração, típica da fadiga.
Enfim, tenho desafiado estudiosos a me enviarem artigos que PROVEM que o cálcio causa a fadiga. E não faço isso porque sou o dono do conhecimento, mas porque essa minha provocação poderá fazer com que alguns me enviem trabalhos sobre o assunto, e com isso eu poderei me elevar um pouco mais. Infelizmente não dá para falar direto com Chris, pois a tolerância dele ‘fadiga’ muito rapidamente.
Por último, em tempos de escritas por inteligência artificial (ex: chatGPT e bard), vale dizer que essa postagem NÃO usa isso. É feita exclusivamente das minhas interpretações. E já conhece meu canal no YouTube? E no meu site há livro e capítulos gratuitos.
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Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site www.wellingtonlunz.com.br. Também tem um canal no YouTube: (youtube.com/@prof.wellingtonlunz) onde transmite conhecimentos baseados em evidência de diferentes áres (ex: hipertrofia muscular, treinamento de força, musculação, fisiologia do exercício, flexibilidade). É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Contato pelo site, e-mail: welunz@gmail.com.br
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