Prof. Dr. Wellington Lunz - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Se você chegou aqui querendo saber 'o que é' e 'como interpretar' a ‘relação força-comprimento’, ou ‘curva força-comprimento’, ou ‘curva força-alongamento’, ou ‘relação tensão-comprimento’, ou ‘relação comprimento-tensão’, os quais são nomes diferentes da mesma coisa, então você deve clicar neste link aqui.
Você será direcionado para o seguinte post: Relação Força-Comprimento de músculos esqueléticos: você REALMENTE sabe interpretar? Lá você entenderá tudo sobre essa relação ilustrada na figura abaixo. Mas se você já leu o post do link acima, você sabe que lá eu deixei algumas provocações para discutir aqui. Essas provocações foram:
1) Você acha que sarcômeros humanos são do mesmo tamanho e se comportam como sarcômeros de outras espécies?
2) O comportamento dessa relação força-comprimento é igual em sarcômeros e músculos?
3) Quando você está fazendo um exercício muscular (ex: musculação), você acha que essa curva se comporta exatamente como nos sarcômeros?
4) E quando você está fazendo os seus vários exercícios de musculação, será que os músculos realmente trabalhariam na alça ascendente? E na alça descendente?
5) Esse conhecimento sobre ‘curva força-comprimento’ tem alguma aplicação prática?
Muito bem, siga aqui que apresentarei alguns insights para ajudar nessas questões.
O comprimento no qual os sarcômeros geram mais força (plateau ou platô) em rãs, como estudado nos clássicos estudos de Gordon et al. (1966; aqui e aqui), ocorre entre 2,0 e 2,2 micrômetros. Já em humanos, o platô parece ser em torno de 2,64 a 2,81 (Rassier et al., 1999).
Sabe-se que sarcômeros não têm o mesmo tamanho nem mesmo dentro da mesma célula, de modo que seria um erro supor que sarcômeros humanos seriam sempre iguais intraespécie e interespécie (Rassier et al., 1999).
Herzog e Keurs (1988b) propuseram e colocaram em prática um modelo matemático inteligente e simples para investigar a curva força-comprimento de músculos humanos in vivo. O artigo deles permite responder algumas das provocações que fiz. Destaco que, até então, os estudos eram feitos em músculos e células isoladas de animais e cadáveres humanos.
Herzog e Keurs investigaram a curva força-comprimento do reto femoral. E os resultados mostraram que:
(1) A curva força-comprimento do músculo humano in vivo é bem mais achatada, larga e com platô maior quando comparada a sarcômeros de animais e de cadáveres humanos.
(2) A curva força-comprimento do músculo humano in vivo é bem diferente entre as diferentes pessoas. Segundo os autores, a estimativa do platô em células do 'reto femoral' deveria ocorrer em torno de 6 cm, mas variou de 3-4 cm até 7-8 cm na amostra. Ou seja, pessoas diferentes, como eu e você, podem ter curva força-comprimento diferentes no mesmo músculo.
Posteriormente, Rassier et al. (1999) relataram que essa curva força-comprimento é adaptável em humanos. Ou seja, o tipo de treinamento físico pode mudar o comprimento muscular onde o platô acontece. Isso pode explicar, em parte, a curva de força de músculos extensores de ciclistas profissionais não ser igual à de corredores ou sedentários.
Herzog e Keurs (1988a) e (1988b) apontam várias razões para a curva força-comprimento de músculos se comportar diferente de sarcômeros, com destaque:
(1) Os tamanhos dos sarcômeros não são homogêneos sequer dentro da mesma célula. Ou seja, para um dado comprimento muscular, os sarcômeros estariam com diferentes tamanhos e, consequentemente, com diferentes capacidades de produção de força.
(2) Em músculos, há muito mais tecido conjuntivo em série e em paralelo que em sarcômeros, o que deve afetar a relação força-comprimento.
(3) Músculos geralmente possuem várias células entre a origem e a inserção. Geralmente, a célula que começa num tendão não vai até o outro tendão. Seria muito arriscado acreditar que essas células e seus sarcômeros trabalhariam igualmente durante uma ação muscular. Além disso, embora habitualmente digamos “contração muscular”, o que ocorre mais frequentemente é a ‘contração de subconjuntos de unidades motoras’ (Hudson et al., 2017 e 2019), e não a contração do músculo todo.
(4) Vários músculos são penados, de modo que a transmissão de força não é igual a músculos não penados.
Uma tese interessante apresentada por Herzog e Keurs (1988a) para explicar o porquê da curva força comprimento ser mais achatada e larga em músculo, quando comparada a sarcômeros, é exatamente a não uniformidade do tamanho dos sarcômeros em músculos. A lógica do pensamento deles é a seguinte:
“Se o tamanho dos sarcômeros no músculo fosse uniforme, todos os sarcômeros trabalhariam na mesma alça ou platô para um dado comprimento muscular; o pico de força seria a resultante da soma das forças produzidas por todos os sarcômeros que, claro, seria o mais alto possível. Mas, se o pico de força no músculo é percentualmente menor que em sarcômeros, provavelmente a explicação é que os diferentes sarcômeros trabalham em diferentes alças para um dado comprimento muscular. A falta de sincronismo dos sarcômeros na produção de força também explicaria a curva mais larga, pois, quando alguns sarcômeros já não conseguem trabalhar, outros podem estar no platô”.
Mas também é possível desconfiar da precisão da curva força-comprimento feita em músculos in vivo por envolver muita estimativa. Os pesquisadores precisam descontar várias variáveis, como a influência dos braços de força, do ângulo de penação e da força passiva. Ainda precisam estimar o número e tamanho de sarcômeros in vivo a partir de dados de animais ou cadáveres (Herzog e Keurs, 1988ab; Cutts, 1988; Maganaris et al., 2003). E não há padrão-ouro para se confrontar os resultados.
É importante ratificar que o fato de a curva força-comprimento não ser igual para sarcômeros e músculos não significa que sejam totalmente diferentes. Assim como ocorre nos sarcômeros, quando um músculo está muito encurtado, há também grande perda da capacidade de produzir força.
Por exemplo, Kawakami et al. (1998), Maganaris et al., (2003) e Hali et al. (2021) mostraram que o gastrocnêmio produz em torno de 60% menos força quando muito encurtado. Isso evidencia a ‘alça ascendente’ e o que costumam chamar de ‘insuficiência ativa’.
Que fazemos ou podemos fazer vários exercícios de musculação na alça ascendente e platô, não tenho qualquer dúvida. Mas e o contrário? Será que quando o músculo in vivo está bastante alongado, teríamos realmente perda de força? Considerando a figura 1, que coloquei lá no início, um músculo bem alongado pode até gerar maior força total.
Mas a pergunta poderia e, talvez, deveria ser mais específica: “Será que quando o músculo in vivo está bastante alongado, ele próprio perderia capacidade de produzir força ativa?”
Falando especificamente nos exercícios que fazemos nos espaços de treinamento de força ou contrarresistência (ex: musculação), tenho muito ceticismo de que isso possa ocorrer, pois tais exercícios não começam com o músculo tão alongado a ponto de percebermos grande resistência passiva.
Herzog e Keurs (1988b), por exemplo, verificaram que o reto femoral alongado gerou força passiva desprezível, sendo sugestivo que, mesmo alongado, esse músculo trabalharia na alça ascendente ou, no máximo, no platô. Aliás, vários pesquisadores interpretam que músculos humanos do segmento inferior trabalham sempre na alça ascendente ou platô (Herzog e Keurs, 1988ab; Rassier et al., 1999; Hali et al., 2021).
E por que estou fazendo esse questionamento sobre se realizamos ou não exercícios na ‘alça descendente’ do músculo? Explico:
Em 2022, um grupo de pesquisa japonês (Maeo et al., 2022) publicou um artigo onde o resultado principal foi que a cabeça longa do músculo tríceps braquial hipertrofiou 50% mais quando treinou mais alongada vs. encurtada.
Esse resultado está alinhado com o de vários outros estudos que mostraram que, para hipertrofia muscular, treinar com a musculatura mais alongada é melhor que treinar com a musculatura encurtada. Contei isso no post ‘Treinar com a musculatura alongada gera mais hipertrofia muscular?’ (depois leia, que ficou bem legal).
Entretanto, apesar de as porções medial e lateral não terem trabalhado mais alongadas, elas também hipertrofiaram mais. O que explicaria isso?
A explicação sugerida pelos autores é que as cabeças medial e lateral teriam sido mais exigidas para compensar a insuficiência mecânica da cabeça longa tríceps, que, no exercício usado, estaria na ‘alça descendente’ da curva força-comprimento.
Um parêntese: Aqui você, leitor, pode perceber uma aplicação desse conhecimento. Se você não souber o que são as ‘alças’ que falei lá em cima, não conseguirá entender artigos como esses. E o risco disso é se tornar refém de afirmações alheias.
Mas uma questão inevitável em relação a esse artigo de Maeo et al. (2022) é sobre a fonte referencial para afirmar que a cabeça longa do tríceps exercitou na alça descendente. Eles citam que usaram o software OpenSim18 para encontrar a curva força-comprimento do tríceps.
Entretanto, o referido software exige que os pesquisadores insiram informações mecânicas confiáveis para o cálculo; e tais informações não estão descritas no artigo deles.
Maeo et al. (2022) certamente usaram informações estimadas, e possivelmente de sarcômeros de cadáveres. Quem trabalha com músculos de cadáveres costuma deixar claro as limitações do modelo. Por exemplo, músculos cadavéricos têm retração muscular, e às vezes nem é possível mudar a posição articular sem prejudicar o tecido (Cutts, 1988).
Em resumo, sou muito cético sobre a sugestão de que a cabeça longa do tríceps braquial, ou de outros músculos, trabalhe na ‘alça descendente’ da curva força-comprimento. Não consigo enxergar um exercício feito em ‘academias de musculação’ que fique perto dessa possibilidade.
Torço que, entre outras coisas, tenha ficado claro para você que nossa capacidade de produção de força depende do comprimento muscular e que aquilo que acontece no sarcômero não pode ser extrapolado para o que acontece no músculo de humanos vivos.
Mas será que essa relação força-comprimento teria algo a ver com hipertrofia muscular? Sobre isso, eu falei lá no post Treinar com a musculatura alongada gera mais hipertrofia muscular?, que você pode ler agora.
Então é isso, amiga e amigo... Obrigado! E se você gostou, compartilhe com colegas e amigos/as ou em suas redes sociais. E quem quiser receber as novas postagens deste Blog, basta clicar aqui para se inscrever na Newsletter.
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E, como habitual, em tempos de escritas por inteligência artificial (ex: chatGPT e Gemini), vale dizer que não uso isso... Meus posts são resultados exclusivos das minhas leituras e interpretações ao longo da minha trajetória. É fundamentada numa base de conhecimento que as AI ainda não costumam acessar.
Lunz, W. 'Relação Força-Comprimento' de sarcômeros, células e músculos NÃO é tudo igual. Ano: 2024. Link: https://www.wellingtonlunz.com.br/post/curva-forca-comprimento [Acessado em __.__.____].
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Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site www.wellingtonlunz.com.br. Tem se dedicado em transmitir conhecimentos baseados em evidências em diferentes áreas do conhecimento (ex: hipertrofia muscular, treinamento de força, musculação, fisiologia do exercício, flexibilidade). É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Contato pelo site ou e-mail: welunz@gmail.com.br
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