"...Se todo o lixo que produzíssemos em casa não pudesse ser retirado, quanto tempo conseguiríamos viver nessa residência? Certamente, em algum momento, viver nesse espaço se tornaria impossível."
Prof. Dr. Wellington Lunz - Universidade Federal do Espírito Santo
É natural que quem se interessa por hipertrofia muscular associe os sistemas proteolítico e autofágico a algo ruim, uma vez que “atrapalha” o ganho de massa muscular. Mas a história não é bem assim! E é isso que os autores dessa revisão aqui sustentam.
Eu faria, de antemão, a seguinte analogia: Se todo o lixo que produzíssemos em casa não pudesse ser retirado, quanto tempo conseguiríamos viver nessa residência? Certamente, em algum momento, viver nesse espaço se tornaria impossível.
E, convenhamos, em termos de sujeira metabólica, o exercício físico é uma “megafesta”, em virtude dos estresses mecânico, oxidativo e térmico que induz. Mas devemos registrar que a ausência de estímulo mecânico, como no caso de imobilizações, também induz proteólise, bem como várias patologias (ex: cânceres e diabetes).
Mas os sistemas proteolítico e autofágico vão muito além dessa limpeza. Destaca-se a função desses sistemas no processo de miogênese a partir de células satélites, o que envolve várias etapas (ativação, proliferação, diferenciação e fusão).
Células satélites são células tronco, que ficam próximas a membrana celular (na membrana basal), e que podem ser recrutadas em algumas situações, geralmente induzidas por estresse (ex: microlesões). No músculo esquelético humano, essas células satélites podem doar seu núcleo para uma célula madura.
Vamos relembrar os 3 principais sistemas proteolíticos:
>> Ubiquitina-proteossoma (UPP)
>> Autofágico-lisossomal (AL)
>> Clivagem de proteína mediada por caspase (CPC)
Para ser mais didático, vou falar de cada um separadamente.
Sistema Ubiquitina-Proteassoma (UPP)
O sistema UPP é o mais importante e conhecido. Funciona da seguinte forma: Proteínas que devem ser degradadas são “etiquetadas” (ubiquitinadas) enzimaticamente por polipeptídios chamados “ligase E3”. As famosas proteínas ‘murf’ e ‘atrogin’ são exemplos de ligase E3.
Essas proteínas etiquetadas (ou ubiquitinadas) são reconhecidas por um grande complexo proteico, chamado de proteassoma 26S, que se assemelha a um barril ou a um túnel (ou ainda a um moedor de carne).
Dentro do proteassoma 26S há um núcleo catalítico que degrada as proteínas ubiquitinadas, com gasto de adenosina trifosfato (ATP). Mas, como antecipei, outras funções estão associadas ao sistema UPP.
Estudos indicam que a inibição do proteassoma diminui a diferenciação e fusão de mioblastos (células musculares embrionárias e precursoras de fibras musculares). Sem isso, não há como recrutar células satélites.
Os autores sugerem que a participação do sistema UPP ocorra via degradação de várias proteínas chaves no processo da miogênese (ex: MyoD, Myf5, myogenin, Id1, proteínas E2A, filamin B, Pax3 e 7). O sistema UPP pode clivar essas proteínas, e isso parece determinante para a competência da diferenciação.
Além disso, a miogênese é um período celular que aumenta muito a produção de energia mitocondrial. Isso, por sua vez, aumenta a produção de radicais livres (ROS) e, consequentemente, mais proteínas são oxidadas. Essas proteínas oxidadas devem ser degradadas pelo sistema UPP, pois do contrário poderiam anular o processo de diferenciação das células satélites.
Portanto, a miogênese parece ser um processo integrado à proteólise. De fato, o treinamento físico aumenta a atividade do sistema UPP, sugerindo que síntese e proteólise são eventos paralelos, que precisam caminhar de mãos dadas.
Sistema Autofágico-Lisossomal (AL)
A autofagia é uma das principais vias de degradação de proteínas em praticamente todas as células do corpo. Esse sistema age “sequestrando” proteínas e/ou organelas disfuncionais, envolvendo-as (ou encapsulando-as) em vesículas esféricas, denominadas autofagossomos.
Na sequência ocorre a fusão dessas vesículas com lisossomos, onde o material citoplasmático encapsulado é degradado, e as biomoléculas essenciais são recicladas. Trata-se, por exemplo, de um importante sistema de reciclagem de energia em situações de privação energética (falarei mais disso adiante).
A privação de nutrientes é um dos ativadores mais potentes da autofagia. Embora isso geralmente promova a perda de massa muscular, o processo parece necessário para fornecer às células substratos que as permitam funcionar continuamente.
Mas vamos entender um pouco sobre como ocorreria essa perda muscular:
Numa situação de privação de nutrientes perde-se a sinalização celular dependente de IGF-1 e insulina, e isso suprime a ativação da AKT (proteína chave para a síntese de proteínas).
Quando a AKT está inibida, ela não consegue inibir a FoxO3, que é uma proteína que inicia a transcrição de genes relacionados à autofagia, como os genes essenciais para a formação de autofagossomos (ex: Atg12l, Atg4b, Gabarapl1 e LC3) e para regulação da autofagia (ex: Bnip3, Bnip3L e Vps34).
Mas há outro caminho: Sabe-se que o aumento na proporção de AMP (adenosina monofosfato) em relação a ATP (AMP:ATP), que ocorre durante a privação de nutrientes, ativa a AMPK (proteína quinase ativada por AMP).
Com isso a AMPK inicia a sinalização da FoxO3 e, ao mesmo tempo, inibi a mTORC1 (outra proteína chave para síntese proteica). Como a mTORC1 é uma proteína que inibi uma via autofágica (via ULK1), ela deixa de cumprir esse papel. Com isso, a via autofágica se torna dominante.
É importante lembrar que o exercício físico, principalmente os de elevada demanda energética (ex: exercícios de longa duração e alto volume) também aumentam o uso de energia (ATP), gerando elevada relação entre AMP:ATP, e isso ativará a AMPK, e por consequência teremos um ambiente intracelular mais catabólico que anabólico.
Além disso, o estresse mecânico e a produção simultânea de ROS durante o exercício também aumenta a necessidade de remoção autofágica de componentes celulares danificados. Isso é bem claro em exercícios de longa duração (ex: ultra-maratona), onde já foi demonstrado a expressão aumentada de vários genes chaves do sistema AL (ex: Atg4b, Atg12, Gabarap1, LC3, Bnip3 e Bnip3l). Isso parece particularmente associado ao turnover mitocondrial (mitofagia).
A maior indução autofágica também pode ser resultante de menor reserva de glicogênio muscular no estado pré-exercício. Isso aumentará a relação AMP:ATP com posterior ativação da AMPK. Ou seja, suprimir o consumo de carboidrato não é uma boa escolha para quem quer ganhar massa muscular.
Em relação ao exercício físico, o mais razoável é que exista um limiar, onde a partir desse ponto as células musculares se engajarão mais na autofagia, no sentido de garantir o funcionamento celular e a homeostase energética.
E isso faz bastante sentido quando pensamos que exercícios de força (pouca demanda energética) geram grande hipertrofia muscular, mas corridas de longa duração, geram pouca massa muscular. A concorrência entre o treinamento de força e corridas diminui o ganho de massa muscular, e isso vai ficando ainda mais claro à medida que o volume de exercício aumenta (veja esse artigo). Detalhe: Parece que a resposta autofágica é maior nas fibras tipo II.
Mas é importante ter a seguinte clareza: O sistema AL não é negativo. Embora ele possa prejudicar o anabolismo, há trabalhos mostrando que o desempenho físico é prejudicado quando o sistema AL está ausente. Afinal, sem ele teríamos “lixo” se acumulando na célula, além da falta de reciclagem energética.
Há também algumas doenças que são causadas ou, no mínimo, estão associadas ao distúrbio do fluxo autofágico (ex: doença de Danon; síndrome de Vici). A ausência desse fluxo faz com que proteínas danificadas se acumulem na célula, podendo causar miopatias.
Há um modelo knockout para Atg7 (proteína chave do sistema autofágico lisossomal), e dentre muitas alterações, verificaram 20 a 40% de redução de área de secção transversa das fibras musculares, com correspondente perda de geração de força.
Por último, a ativação de células-tronco musculares também parece dependente da autofagia, pois acredita-se que ela forneça os nutrientes necessários para atender às demandas bioenergéticas das células satélites em transição da quiescência para o estado ativado.
Sistema de Proteólise Mediado por Caspase
As caspases (proteases) são uma família de enzimas proteolíticas mais comumente conhecidas por seu papel no início da apoptose.
Caspases são tipicamente classificadas como iniciadoras (caspase-2, caspase-8, caspase-9, caspase-10) ou efetoras (caspase-3, caspase-6, caspase-7), sendo que as primeiras são responsáveis por ativar as efetoras.
O papel das caspases na apoptose e sua associação com várias formas de atrofia muscular nos faz pensar que elas são negativas. Afinal, são “destruidoras de células”. Pode parecer paradoxal, mas elas também são vitais.
Por exemplo, como a Pax7 pode ser degradada por caspase, acredita-se que essa remoção da Pax7 ocorra por intermédio de caspases, permitindo assim a diferenciação de células satélites.
Apenas para contextualizar, a Pax7 é um fator de transcrição essencial para manter o nicho de células satélites. Para que células satélites adquiram competência de diferenciação, a Pax7 precisa ser removida. A caspase 3 teria papel importante nisso, sendo a responsável pela clivagem proteolítica da Pax7.
Há pouca dúvida da ligação entre a caspase 3 e hipertrofia de cardiomiócitos, o que sugere que a caspase 3 também poderia agir de forma similar em miócitos esqueléticos. O que permanece desconhecido são os controles bioquímicos que permitem direcionar o papel vital ou mortal (apoptose) das caspases.
Concluindo, os sistemas proteolíticos são extremamente importantes para manter a “proteostase” (homeostase proteica), e, assim, a manutenção da vida celular. Além disso, durante a privação de nutrientes, o organismo depende da proteólise para manter a homeostase de energia de todo o corpo.
A proteólise é parte essencial da produção de novas fibras musculares esqueléticas e adaptação das fibras musculares ao estresse celular. Como vimos, esses sistemas estão associados a miogênese (diferenciação e fusão de mioblastos, e formação de miotubos).
Também estão associados ao próprio desempenho físico, pois seria impossível manter a atividade celular sem limpar o “lixo” produzido de forma contínua, pelo estresse mecânico e oxidativo.
Mas, claro, quem quer ganhar massa muscular precisa agir de forma inteligente para que o anabolismo proteico supere o catabolismo no longo prazo.
Até a próxima postagem!
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Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site www.wellingtonlunz.com.br. Também tem um canal no YouTube: (youtube.com/@prof.wellingtonlunz) onde transmite conhecimentos baseados em evidência de diferentes áres (ex: hipertrofia muscular, treinamento de força, musculação, fisiologia do exercício, flexibilidade). É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. Atualmente é Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Contato pelo site, e-mail: welunz@gmail.com.br